O peso do massacre para as mulheres na Penha: luto e medo

A operação policial de 28 de outubro abriu uma ferida profunda  e revela como o medo se molda conforme a raça, o bairro, o gênero e a condição social.

Massacre no Complexo da Penha: rostos do medo no Rio | ACCA
direitos humanos • favela • rio de janeiro

Quando o medo ganha endereço: o massacre no Complexo da Penha e os rostos distintos do medo no Rio

O massacre no Complexo da Penha abriu uma ferida profunda e revela como o medo se molda conforme a raça, o bairro, o gênero e a condição social.

Por Jade Klaser ACCA – Autonomia Feminina 06 nov 2025
Massacre no Complexo da Penha no Rio de Janeiro: helicóptero sobrevoando a favela; medo, luto e violência de Estado
Registro ilustrativo do território após operações — massacre no Complexo da Penha e seus rostos distintos do medo.

O massacre no Complexo da Penha, na manhã de 28 de outubro de 2025, começou com sirenes, helicópteros e veículos blindados. As comunidades do Complexo do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foram palco da mais letal operação policial da história do estado.

Nota ACCA: proteger a vida exige políticas que não transformem territórios em campos de guerra — e que escutem as mulheres que sustentam a comunidade após a violência.

Segundo números oficiais, ao menos 119 pessoas morreram, entre elas quatro policiais. Organizações da sociedade civil estimam que esse número possa ultrapassar 130. Além disso, houve 81 prisões durante a operação.

Massacre no Complexo da Penha: transporte, trabalho e feridas invisíveis

Dezenas de milhares de trabalhadores e moradores comuns se viram impedidos de voltar para casa. Vias bloqueadas, transportes suspensos, bairros sitiados por barricadas e tiroteios. Relatos de ônibus parados, ruas interditadas, famílias isoladas.

No dia seguinte, a cena era devastadora: corpos estirados no asfalto. Mulheres chorando filhos, maridos, irmãos. O silêncio só era rompido pelos helicópteros que ainda sobrevoavam o morro.

Medo nas favelas do Rio: rostos e territórios

O medo, no entanto, não se espalha de forma igual. Ele muda conforme o rosto, o CEP, a cor da pele e o gênero de quem o sente.

Nos bairros de classe média, longe das comunidades, o medo é ditado pelos noticiários: o medo das facções, da bala perdida, da vingança. Nas favelas, o medo é cotidiano e concreto: atravessa janelas, paredes e corpos. É o medo do Estado e, após o massacre no Complexo da Penha, torna-se rotina para quem segue vivendo o luto.

Dados do massacre no Complexo da Penha: padrão letal

Entre 2010 e 2015, quase 99,5% das vítimas de mortes em intervenções policiais no Rio eram homens; 79% negros e 75% jovens entre 15 e 29 anos. O medo que se transforma em morte tem cor, idade e território.

Nos apartamentos com vista para o mar, o medo é o país “perdendo o rumo”. Enquanto isso, há quem viva onde o rumo nunca chegou.

Violência de Estado no Rio e medo nas favelas: território do Complexo da Penha evidenciando desigualdades
Território e desigualdades: camadas sociais e raciais do medo.

O medo é social, racial e geográfico. Não se distribui de forma justa. Nas favelas, ele é concreto — tem nome e endereço. Nos bairros ricos, é simbólico.

O massacre da Penha não é um episódio isolado: é a expressão mais cruel de um medo que o Estado produz e administra, que serve para controlar corpos, justificar mortes e sustentar distâncias. E só quem sente o medo no corpo sabe o quanto ele pesa.

Mulheres após a operação: luto, rotina e sobrevivência

As mulheres não são as principais vítimas fatais das operações policiais, mas vivem o medo de forma múltipla e persistente: como mães que perdem filhos, esposas que perdem parceiros, e mulheres que enfrentam a violência de gênero com pouca ou nenhuma proteção social.

Especialmente as negras e periféricas, que temem não apenas a morte, mas a ausência, a perda do companheiro, do emprego, da rotina, da casa. Temem não conseguir levar o filho à escola, não voltar viva do trabalho, ou ter o luto transformado em estatística.

Por isso, a pergunta é legítima: quem são as maiores vítimas do medo? Não necessariamente quem morre primeiro, mas quem permanece e carrega o medo todos os dias.

Para elas, o medo tem outros nomes: feminicídio, luto, ausência, fome, solidão. Quando os homens morrem nas mãos do Estado ou do tráfico, as mulheres ficam. Elas sobrevivem. Ficam com os filhos, com o sustento da casa, com os corpos para reconhecer e enterrar. Ficam com o trauma.

Em muitos casos, a vulnerabilidade se acumula: ser mulher, negra, mãe solo, moradora de favela é viver sob múltiplas camadas de medo após o massacre no Complexo da Penha.

Respostas possíveis: feminismo e políticas de vida

Quando falamos em violência de Estado, pensamos nas mortes diretas. Mas, quando o corpo é retirado da rua, quem permanece com a dor, a ausência, o sustento e o luto?

É nesse ponto que as mulheres se tornam as maiores vítimas invisíveis dessa engrenagem. Elas não morrem com o tiro, morrem um pouco todos os dias. De medo, de exaustão, de descuido.

A violência de Estado é também um projeto que recai sobre elas — sobre as mães negras que há séculos sustentam a vida em um país que as nega. O feminismo negro já denuncia isso: a necropolítica não mata só os corpos masculinos, mas destrói lares, rompe vínculos e condena mulheres a sobreviver ao insuportável.

Mais de uma centena de homens mortos e outros tantos feridos. O cenário era de guerra, mas a disputa era por narrativas: a esquerda e a direita, o crime e a justiça, a favela e o Estado. De um lado, a polícia; de outro, os criminosos. E, no fim, o saldo de sempre: vidas perdidas e mulheres de luto.

O corpo que sangra é masculino, mas o luto que permanece é feminino.

Por isso, quando falamos em medo, precisamos olhar para as mulheres. Elas vivem a guerra sem nunca tê-la escolhido. Sentem o medo no corpo, na ausência, no ventre. Enterram os mortos e tentam manter os vivos de pé.

O feminismo, nesse contexto, é mais que um discurso político — é um ato de reconstrução. Um gesto de devolver humanidade a quem foi desumanizado, de resgatar o rosto e a voz de quem o Estado insiste em apagar.

Porque o medo tem endereço, tem cor, tem gênero — mas também pode ter e dar respostas. E essa resposta começa na escuta das mulheres: naquelas que transformam dor em resistência, silêncio em palavra, e perda em coragem para seguir.

São elas que, mesmo diante da violência, seguem criando, educando, denunciando e reexistindo — mantendo viva a esperança de um país que ainda pode aprender a não matar.

Ninguém mata ninguém. Nem o Estado os homens, nem os homens as mulheres. Porque a vida não pode ser o preço da ordem, nem só o luto o destino das mulheres.

É tempo de reinventar o medo — transformá-lo em voz, em denúncia, em movimento. Que a escuta das mulheres seja o começo de um país que ainda pode escolher a vida. Porque viver, neste país, ainda é o gesto mais radical que existe após o massacre no Complexo da Penha.

Contra o medo, políticas de vida.
Após o massacre no Complexo da Penha, nossa curadoria reúne direitos humanos, segurança cidadã e proteção de mulheres em territórios periféricos.
Conheça a Plataforma Autonomia Feminina – ACCA
Esta matéria integra o esforço contínuo da ACCA por direitos, segurança e participação das mulheres na esfera pública — com escuta, cuidado e justiça.