A operação policial de 28 de outubro abriu uma ferida profunda e revela como o medo se molda conforme a raça, o bairro, o gênero e a condição social.
Quando o medo ganha endereço: o massacre no Complexo da Penha e os rostos distintos do medo no Rio
O massacre no Complexo da Penha abriu uma ferida profunda e revela como o medo se molda conforme a raça, o bairro, o gênero e a condição social.
O massacre no Complexo da Penha, na manhã de 28 de outubro de 2025, começou com sirenes, helicópteros e veículos blindados. As comunidades do Complexo do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foram palco da mais letal operação policial da história do estado.
Segundo números oficiais, ao menos 119 pessoas morreram, entre elas quatro policiais. Organizações da sociedade civil estimam que esse número possa ultrapassar 130. Além disso, houve 81 prisões durante a operação.
Massacre no Complexo da Penha: transporte, trabalho e feridas invisíveis
Dezenas de milhares de trabalhadores e moradores comuns se viram impedidos de voltar para casa. Vias bloqueadas, transportes suspensos, bairros sitiados por barricadas e tiroteios. Relatos de ônibus parados, ruas interditadas, famílias isoladas.
No dia seguinte, a cena era devastadora: corpos estirados no asfalto. Mulheres chorando filhos, maridos, irmãos. O silêncio só era rompido pelos helicópteros que ainda sobrevoavam o morro.
Medo nas favelas do Rio: rostos e territórios
O medo, no entanto, não se espalha de forma igual. Ele muda conforme o rosto, o CEP, a cor da pele e o gênero de quem o sente.
Nos bairros de classe média, longe das comunidades, o medo é ditado pelos noticiários: o medo das facções, da bala perdida, da vingança. Nas favelas, o medo é cotidiano e concreto: atravessa janelas, paredes e corpos. É o medo do Estado e, após o massacre no Complexo da Penha, torna-se rotina para quem segue vivendo o luto.
Dados do massacre no Complexo da Penha: padrão letal
Entre 2010 e 2015, quase 99,5% das vítimas de mortes em intervenções policiais no Rio eram homens; 79% negros e 75% jovens entre 15 e 29 anos. O medo que se transforma em morte tem cor, idade e território.
Nos apartamentos com vista para o mar, o medo é o país “perdendo o rumo”. Enquanto isso, há quem viva onde o rumo nunca chegou.
O medo é social, racial e geográfico. Não se distribui de forma justa. Nas favelas, ele é concreto — tem nome e endereço. Nos bairros ricos, é simbólico.
O massacre da Penha não é um episódio isolado: é a expressão mais cruel de um medo que o Estado produz e administra, que serve para controlar corpos, justificar mortes e sustentar distâncias. E só quem sente o medo no corpo sabe o quanto ele pesa.
Mulheres após a operação: luto, rotina e sobrevivência
As mulheres não são as principais vítimas fatais das operações policiais, mas vivem o medo de forma múltipla e persistente: como mães que perdem filhos, esposas que perdem parceiros, e mulheres que enfrentam a violência de gênero com pouca ou nenhuma proteção social.
Especialmente as negras e periféricas, que temem não apenas a morte, mas a ausência, a perda do companheiro, do emprego, da rotina, da casa. Temem não conseguir levar o filho à escola, não voltar viva do trabalho, ou ter o luto transformado em estatística.
Por isso, a pergunta é legítima: quem são as maiores vítimas do medo? Não necessariamente quem morre primeiro, mas quem permanece e carrega o medo todos os dias.
Para elas, o medo tem outros nomes: feminicídio, luto, ausência, fome, solidão. Quando os homens morrem nas mãos do Estado ou do tráfico, as mulheres ficam. Elas sobrevivem. Ficam com os filhos, com o sustento da casa, com os corpos para reconhecer e enterrar. Ficam com o trauma.
Em muitos casos, a vulnerabilidade se acumula: ser mulher, negra, mãe solo, moradora de favela é viver sob múltiplas camadas de medo após o massacre no Complexo da Penha.
Respostas possíveis: feminismo e políticas de vida
Quando falamos em violência de Estado, pensamos nas mortes diretas. Mas, quando o corpo é retirado da rua, quem permanece com a dor, a ausência, o sustento e o luto?
É nesse ponto que as mulheres se tornam as maiores vítimas invisíveis dessa engrenagem. Elas não morrem com o tiro, morrem um pouco todos os dias. De medo, de exaustão, de descuido.
A violência de Estado é também um projeto que recai sobre elas — sobre as mães negras que há séculos sustentam a vida em um país que as nega. O feminismo negro já denuncia isso: a necropolítica não mata só os corpos masculinos, mas destrói lares, rompe vínculos e condena mulheres a sobreviver ao insuportável.
Mais de uma centena de homens mortos e outros tantos feridos. O cenário era de guerra, mas a disputa era por narrativas: a esquerda e a direita, o crime e a justiça, a favela e o Estado. De um lado, a polícia; de outro, os criminosos. E, no fim, o saldo de sempre: vidas perdidas e mulheres de luto.
O corpo que sangra é masculino, mas o luto que permanece é feminino.
Por isso, quando falamos em medo, precisamos olhar para as mulheres. Elas vivem a guerra sem nunca tê-la escolhido. Sentem o medo no corpo, na ausência, no ventre. Enterram os mortos e tentam manter os vivos de pé.
O feminismo, nesse contexto, é mais que um discurso político — é um ato de reconstrução. Um gesto de devolver humanidade a quem foi desumanizado, de resgatar o rosto e a voz de quem o Estado insiste em apagar.
Porque o medo tem endereço, tem cor, tem gênero — mas também pode ter e dar respostas. E essa resposta começa na escuta das mulheres: naquelas que transformam dor em resistência, silêncio em palavra, e perda em coragem para seguir.
São elas que, mesmo diante da violência, seguem criando, educando, denunciando e reexistindo — mantendo viva a esperança de um país que ainda pode aprender a não matar.
Ninguém mata ninguém. Nem o Estado os homens, nem os homens as mulheres. Porque a vida não pode ser o preço da ordem, nem só o luto o destino das mulheres.
É tempo de reinventar o medo — transformá-lo em voz, em denúncia, em movimento. Que a escuta das mulheres seja o começo de um país que ainda pode escolher a vida. Porque viver, neste país, ainda é o gesto mais radical que existe após o massacre no Complexo da Penha.
Leia também
Massacre nas favelas do Rio de Janeiro — ACCA
Matéria complementar da ACCA sobre violência de Estado e impactos nos territórios.





