Corpos Livres, Leis em Disputa: o direito à laqueadura no Brasil
Entre conquistas e resistências, a autonomia reprodutiva segue em julgamento — e o corpo das mulheres continua sendo território de luta.
A Lei nº 14.443/2022 representou uma conquista histórica para os direitos reprodutivos no Brasil. Em vigor desde março de 2023, ela transformou a antiga Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/1996), garantindo que mulheres e homens possam optar pela esterilização voluntária sem precisar de autorização do cônjuge.
As principais mudanças incluem a redução da idade mínima para o procedimento, a possibilidade de realizar a laqueadura durante o parto e a obrigação do SUS de oferecer métodos contraceptivos em até 30 dias — avanços fundamentais para a afirmação da autonomia corporal e da dignidade humana.
O debate, porém, não se encerrou: em 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5911), proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que questiona se as restrições de idade mínima (21 anos) e de exigência de dois filhos vivos previstas na lei são compatíveis com a Constituição Federal. Após suspensão por pedido de vista e nova retomada em junho de 2025, formou-se maioria parcial pela inconstitucionalidade dessas limitações, com a tendência de vincular o direito à esterilização voluntária à maioridade civil (18 anos) e ao consentimento informado. A decisão final não havia sido publicada nas comunicações oficiais do STF no momento da última retomada.
O que mudou com a nova lei
A legislação eliminou barreiras que, por décadas, restringiram a liberdade individual de escolha sobre a própria reprodução. Entre os principais avanços estão:
- Fim da autorização conjugal: O procedimento não depende mais do consentimento do cônjuge ou companheiro.
- Laqueadura no parto: Mulheres podem realizar a esterilização imediatamente após o nascimento do bebê, desde que manifestem o desejo com pelo menos 60 dias de antecedência.
- Prazo de oferta pelo SUS: O sistema de saúde passou a ser obrigado a disponibilizar métodos contraceptivos, incluindo a esterilização, em até 30 dias após a solicitação.
Por que o STF está julgando a lei?
A ADI 5911 contesta dois critérios específicos da Lei 14.443/2022:
- A exigência de idade mínima de 21 anos para realizar o procedimento;
- A exigência alternativa de ter ao menos dois filhos vivos.
Para o PSB, essas restrições violam princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a autonomia individual e o direito à igualdade. O partido defende que a decisão sobre esterilização deve caber exclusivamente à pessoa maior de 18 anos, desde que devidamente informada sobre os riscos e a irreversibilidade do procedimento.
“A maternidade compulsória e a imposição de barreiras ao planejamento familiar representam formas de violência institucional contra mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade social.”
O que está em jogo
| Aspecto | Lei Atual (14.443/2022) | Proposta na ADI 5911 |
|---|---|---|
| Idade mínima | 21 anos ou 2 filhos vivos | 18 anos (maioridade civil) |
| Autorização conjugal | Não é necessária | Não é necessária |
| Fundamento | Planejamento familiar | Autonomia e dignidade |
Impactos esperados da decisão do STF
Se o STF decidir pela inconstitucionalidade das restrições de idade e número de filhos, o acesso à esterilização voluntária será ampliado para todas as pessoas maiores de 18 anos que manifestem desejo livre e informado. Isso representaria:
- Maior alinhamento com tratados internacionais de direitos humanos;
- Redução de desigualdades no acesso a métodos contraceptivos definitivos;
- Fortalecimento da autonomia reprodutiva, especialmente para mulheres negras, periféricas e de baixa renda, que historicamente enfrentam mais obstáculos para exercer esse direito.
Entre avanços e resistências
Apesar dos progressos legislativos, a efetivação dos direitos reprodutivos no Brasil ainda enfrenta desafios estruturais. Mesmo com a obrigatoriedade de oferta em 30 dias, muitas unidades do SUS não dispõem de estrutura adequada para realizar os procedimentos. Além disso, persistem julgamentos morais e pressões sociais que desencorajam mulheres a buscar a esterilização voluntária.
O julgamento da ADI 5911 representa, assim, não apenas uma disputa jurídica, mas um debate social sobre quem tem poder de decidir sobre os próprios corpos. E, diante disso, uma pergunta permanece central: até quando o Estado poderá impor limites à autonomia reprodutiva das mulheres?




