Neide Barros fala sobre redes de apoio e o enfrentamento à violência contra as mulheres
“Fortalecer-se é o primeiro passo. Denunciar é importante, mas criar redes de apoio e reconstruir a autoestima é o que devolve às mulheres o direito de existir.” — Neide Barros
Do Estúdio ao Blog é o espaço onde transcrevemos e adaptamos os episódios do programa ACCA: Autonomia Feminina. A cada semana, reunimos os dois episódios gravados com cada convidada ou convidado em uma entrevista única, para que você possa ler, compartilhar e revisitar os diálogos que nos inspiram a construir autonomia.
Nesta edição, recebemos Neide Barros — terapeuta integrativa, pesquisadora, historiadora e futura psicóloga, com atuação em projetos de apoio a mulheres vítimas de violência. A partir de sua vivência em grupos terapêuticos e atendimentos comunitários, Neide fala sobre a importância das redes de apoio, o papel do acolhimento psicológico e a necessidade de romper o ciclo da violência que afeta tantas mulheres no Brasil.
Ela também reflete sobre a vergonha, a culpa e a dependência emocional que silenciam tantas vítimas, e sobre como a educação feminista e o conhecimento compartilhado ajudam na reconstrução da autonomia feminina. Nesta conversa profunda, teoria e prática se unem para mostrar que romper o isolamento é um ato político de resistência.
A seguir, leia a entrevista adaptada dos episódios do programa com Neide Barros, que fala sobre acolhimento, autonomia e redes de apoio femininas.Transcrição adaptada do programa ACCA: Autonomia Feminina
ACCA Autonomia Feminina: Neide, sua trajetória une pesquisa histórica e atuação terapêutica com mulheres vítimas de violência. Como esses dois mundos se conectaram e o que esse trabalho representa para você?
Neide Barros: Eu trabalhei muitos anos na educação e depois fiz uma transição para a área terapêutica. Hoje, como terapeuta integrativa e estudante de psicologia, participo de um grupo coordenado pela professora Simone Abadia, na UniAlpha, que oferece atendimentos psicossociais gratuitos a mulheres em situação de vulnerabilidade. São rodas de conversa, encaminhamentos e orientações que funcionam como um espaço de acolhimento e fortalecimento. Acredito muito na união entre teoria e prática; precisamos refletir, mas também agir sobre as situações que nos incomodam.
ACCA Autonomia Feminina: Sua pesquisa de mestrado, que deu origem ao livro Histórias Escritas com Sangue, analisou processos judiciais de assassinatos de mulheres em Goiás nas décadas de 70 e 80. O que essa pesquisa revelou sobre o tratamento histórico do feminicídio?
Neide Barros: Minha pesquisa mostrou uma realidade assustadora de impunidade. Dos 14 casos que analisei, que envolviam homicídio e tentativa de homicídio contra 16 vítimas, nenhum dos agressores foi efetivamente condenado pelos crimes. Em 13 desses casos, o agressor tinha uma relação afetiva com a vítima. O argumento da “paixão” ou do “amor descontrolado” era usado como justificativa para a violência, um discurso que infelizmente ainda ecoa. A pesquisa revelou que a estrutura social e jurídica da época era conivente com essa violência, tratando a vida das mulheres como algo secundário.
ACCA Autonomia Feminina: Você fala muito sobre a vergonha e a internalização da culpa como barreiras que impedem a denúncia. Como a estrutura patriarcal contribui para esse silenciamento?
Neide Barros: Essa é uma das partes mais difíceis. A mulher é ensinada desde cedo a se submeter. Como Simone de Beauvoir apontou, a estrutura social foi construída para que a mulher exista em função do outro, seja o homem ou os filhos. Há um medo profundo do julgamento, de ser vista como a “errada” ou a “bruxa”, e não como a “princesa” que espera ser salva. Mesmo mulheres com independência financeira permanecem em relações abusivas por medo do estigma social. A violência é cíclica, com fases de “lua de mel” e promessas de mudança, o que torna o rompimento ainda mais complexo. A vergonha de ter voltado para o agressor muitas vezes impede que a mulher procure ajuda novamente.
ACCA Autonomia Feminina: Diante desse cenário, qual é o primeiro passo para uma mulher que decide sair de um ciclo de violência?
Neide Barros: O primeiro passo é se fortalecer. Muitas vezes, a mulher ainda não está pronta para denunciar, e tudo bem. Fortalecer-se é um ato estratégico. Isso significa procurar amigas, familiares e criar uma rede de confiança para romper o isolamento. O segundo caminho é buscar apoio psicológico. Existem atendimentos gratuitos no SUS, nos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) e nas clínicas-escola de universidades. Esse suporte é fundamental para reconstruir a autoestima, que é destruída pela violência. A agressão não é só física; ela vem acompanhada de violência psicológica que diz que a mulher é “burra”, “incapaz” e “não vai conseguir nada sozinha”.
ACCA Autonomia Feminina: E como as redes de apoio funcionam na prática para além do suporte emocional?
Neide Barros: Elas são fundamentais e funcionam em várias frentes. Uma rede de apoio não é apenas jurídica, é afetiva e informativa. Muitas vezes, o que falta é informação: saber onde buscar apoio, como se inscrever em programas sociais ou como sair de casa com segurança. Temos as delegacias especializadas, como a Delegacia da Mulher de Goiânia (DEAM), que tem realizado um trabalho importante de acompanhamento. Existem também iniciativas da sociedade civil, como o projeto “Mano é Mano”, e diversas cooperativas e coletivos femininos que ajudam mulheres a conquistar a independência financeira. A rede funciona quando as mulheres compartilham o que sabem, e é isso que espaços como o programa ACCA buscam fazer: conectar, orientar e informar.
ACCA Autonomia Feminina: Na sua experiência, o que significa a autonomia feminina nesse contexto de superação da violência?
Neide Barros: Autonomia é reconstruir-se. É se ver inteira, mesmo depois da dor. É olhar para dentro e redescobrir o próprio valor. Nos atendimentos, vejo mulheres que chegam destruídas, mas que, com o tempo, voltam a estudar, a trabalhar, a sonhar. Autonomia não é apenas financeira — é emocional, simbólica e existencial. É quando a mulher percebe que não depende de ninguém para ser quem é.
Este conteúdo integra o projeto Do Estúdio ao Blog, que transforma em leitura as vozes do programa ACCA: Autonomia Feminina. Para assistir às conversas completas, inscreva-se em nosso canal no YouTube e faça parte dessa construção coletiva de autonomia.




