Do Estúdio ao Blog
Geralda Cunha: Violência Digital, Resistência e o Poder da Palavra
Como uma ativista e jornalista feminista transforma medo em estratégia no enfrentamento à violência digital contra mulheres
“Quando uma mulher chega ao poder, a vida de muitas mulheres mudam. Porque a mulher conhece profundamente o que é ser mulher.” — Geralda Cunha
Transcrição adaptada do projeto Do Estúdio ao Blog
Do Estúdio ao Blog é o espaço onde transcrevemos e adaptamos as conversas com mulheres que inspiram autonomia e resistência. Nesta edição, Geralda Cunha e a violência digital é o tema central de uma conversa sobre comunicação, educação e coragem feminina.
Geralda Cunha Teixeira, 60 anos, é ativista, jornalista, pesquisadora, comunicadora e feminista com uma trajetória de mais de 30 anos no enfrentamento à violência contra a mulher. Formada em Comunicação, iniciou sua carreira na Polícia Civil como escrivã, vivenciando de perto a realidade da violência doméstica em uma época em que praticamente não existiam mecanismos de defesa das mulheres. Sua experiência se expandiu para a educação e a militância, trabalhando no programa de rádio Palavra de Mulher, criado pela Pastoral da Mulher em 1993, que funcionou até 2016 e transformou a vida de inúmeras mulheres.
Saiba mais sobre políticas públicas de enfrentamento à violência digital no Ministério dos Direitos Humanos e no Observatório da Internet Olabi.
Transformar Medo em Estratégia: O Contexto da Violência Digital
A violência digital contra mulheres é um fenômeno crescente que atinge milhares de brasileiras. Os números são alarmantes e revelam a urgência do tema:
Dados da violência digital: Em 2022, mais de 74 mil crimes de ódio foram registrados na internet. 73% das jornalistas sofreram ataques virtuais. 58% das prefeitas foram ameaçadas. Uma em cada quatro mulheres até os 35 anos já sofreu violência online. 65% das mulheres evitam postar fotos ou opiniões por medo de serem punidas por existirem.
Esses dados são apenas a ponta do iceberg. A questão da violência digital está crescente, alimentada pela “machosfera” — um conjunto de forças criadas para eliminar a voz e a existência das mulheres na internet. É neste contexto que a campanha Corte o Ódio, Conecte Igualdade foi lançada pela ACCA, com um e-book que busca proteger a voz digital das mulheres.
Da Polícia Civil à Militância: A Trajetória de Geralda
Geralda Cunha Teixeira começou a trabalhar muito cedo. Sua experiência na Polícia Civil como escrivã, entre o final da década de 80 e os anos 90, foi marcante para compreender a realidade da violência contra as mulheres.
Geralda: “Comecei a trabalhar na polícia civil como escrivante de polícia na década final de 80, 90, ainda do século XX. A gente já vivia essa realidade de violência contra as mulheres numa época que ainda não existiam praticamente quase nenhum mecanismo de defesa das mulheres, nem leis.”
Naquela época, as leis naturalizavam a violência. A chamada “lei de menor potencial ofensivo” permitia que homens que batiam em mulheres fossem soltos com uma cesta básica. Era um crime que não era considerado relevante.
A luta das mulheres, as reivindicações sociais e a redemocratização do país, com a Constituição de 1988, começaram a mudar essa realidade. Mas Geralda ressalta que as leis sozinhas não são suficientes:
Geralda: “Para fazer esse enfrentamento não basta leis também, é preciso que os próprios profissionais da segurança pública, que a gente chama de operadoras, operadores da segurança pública, tem um olhar diferenciado, porque muitas vezes as mulheres ao chegar à delegacia eram novamente violentadas pelos operadores.”
A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, foi um marco importante para compreender a dinâmica específica da violência contra a mulher — uma violência patriarcal e machista, profundamente introjetada na cultura. No entanto, mesmo com essa lei e a lei contra o feminicídio, os números de violência continuam crescentes.
Após sua experiência na polícia, Geralda se formou em Comunicação e começou a trabalhar no programa de rádio Palavra de Mulher, criado pela Pastoral da Mulher em 1993. O programa, que funcionou até 2016, foi transformador não apenas para as mulheres que o ouviam, mas para a própria Geralda, que agregou à sua vivência a visão de militância, movimento social e feminismo.
A Mídia e a Invisibilização das Mulheres
Um dos pontos que mais chocou Geralda ao longo de sua carreira foi o desconhecimento e a falta de formação sobre questões de gênero entre os próprios profissionais de comunicação. Quando realizou sua especialização em comunicação e assessoria de comunicação, ela investigou onde e como as mulheres apareciam na mídia:
Geralda: “Onde é que as mulheres apareciam nos jornais? Onde é que as mulheres apareciam nos programas de TV? E se restringia a dois lugares. Em relação à violência, ou elas eram vítimas… vítimas de violência, então aparecer nas páginas de policiais, dos jornais, ou ainda nos programas de TV, ou nas páginas sensualizadas de jornais e de campanhas, de cerveja, qualquer propaganda com a mulher ali com pouca roupa, para vender o produto.”
Essa representação limitada denota uma sociedade estruturada em uma visão machista que não reconhece a capacidade da mulher de ocupar outros espaços. Ao mesmo tempo, estereotipa a mulher como “coitadinha” ou como culpada por ser violentada — sempre culpabilizando a vítima por existir.
A situação piora com a espetacularização da mídia contemporânea. Quando o foco está em likes, visualizações e lucro com campanhas publicitárias, a profundidade do conteúdo fica em segundo plano. E quem sai prejudicada são as mulheres novamente:
Geralda: “Eu preciso vender. Para eu vender, eu não vou me preocupar muito com o conteúdo. Eu preciso me preocupar com a casca. Então, se aprofunda pouco. E com isso, quem sai prejudicada são as mulheres novamente.”
Violência Estrutural: Uma Questão Histórica e Política
Para Geralda, a violência digital não é um fenômeno isolado, mas o resultado de um processo histórico de dominação. Ela conecta a análise de Marx sobre a desigualdade estrutural com as reflexões de Simone de Beauvoir sobre a sujeição da mulher:
Geralda: “Simone de Beauvoir fala como que é a sujeitação da mulher, ou seja, vem um processo… A mulher numa posição igual do escravo, ela faz essa correlação, ou seja, ela é tão assujeitada que ela só existe a partir do outro, ou do marido, ou dos filhos.”
Geralda também cita Silvia Federici, que amplia essa análise ao afirmar que os corpos das mulheres foram o primeiro lugar da acumulação primitiva. Além de gerar vida através do trabalho invisível, as mulheres sustentaram historicamente o sistema capitalista, tornando-se propriedade dos homens e do Estado.
A violência, portanto, é uma ferramenta de contenção e subjugação. Para romper essas barreiras, é necessário compreender o contexto e agir com conhecimento:
Geralda: “A gente precisa entender o contexto e conversar das coisas para poder agir. E para poder sensibilizar inclusive quem está com a caneta nas mãos, quem está à frente do poder.”
Educação, Formação e Caminhos para a Mudança
Geralda acredita que os movimentos sociais e as lutas feministas avançaram muito nos últimos anos, não apenas dando visibilidade à violência, mas explicando suas raízes. A educação é fundamental para essa transformação:
Geralda: “A formação passa pela formação das mulheres. A educação é fundamental, não é um processo de um dia para outro. É um processo cotidiano.”
Ela aponta que a luta das mulheres por direitos iguais começou com a Revolução Industrial, quando a mão de obra feminina se tornou necessária. Isso gerou novas necessidades e levou à luta por condições iguais de trabalho — simbolizada pelo 8 de março. Avanços como o direito ao próprio corpo e o acesso à pílula anticoncepcional foram revolucionários, permitindo que as mulheres planejassem suas vidas reprodutivas.
No entanto, Geralda ressalta que as mulheres continuam tendo que bater em portas e confrontar estereótipos. Reivindicações antigas, como o direito à creche para a mãe trabalhadora, ainda são necessárias porque as mulheres enfrentam triplas jornadas de trabalho.
A representatividade política também é crucial. Geralda cita a frase da ex-presidente chilena Michelle Bachelet:
Michelle Bachelet: “Quando uma mulher chega ao poder, a vida de muitas mulheres mudam. Porque a mulher conhece profundamente o que é ser mulher.”
No Brasil, governos misóginos e conservadores causam retrocesso. Conquistas já alcançadas parecem desaparecer quando não há sensibilidade às questões de gênero nas estruturas de poder. Delegacias de proteção aos direitos das mulheres existem, mas muitas vezes não estão estruturadas ou não são vistas como prioritárias.
O Poder da Palavra: Resistência Feminina na Era Digital
A entrevista com Geralda reforça uma verdade fundamental: quando as mulheres falam, o sistema colapsa. A violência digital é uma tentativa de silenciar essa voz, mas a resistência feminina continua se manifestando em cada palavra dita, em cada denúncia feita, em cada post compartilhado com coragem.
A transformação de medo em estratégia, como propõe o título desta conversa, é exatamente o que Geralda faz ao longo de sua trajetória. Ela não apenas documenta a violência, mas oferece ferramentas para compreendê-la, contextualizá-la e enfrentá-la coletivamente.
Para as mulheres que sofrem violência digital, a mensagem de Geralda é clara: você não está sozinha. Existem redes de apoio, existem leis, existem mulheres lutando todos os dias para que sua voz seja ouvida e respeitada.
Quer fazer parte da mudança?
Junte-se à Plataforma ACCA e fortaleça a rede de mulheres que transformam conhecimento em ação e resistência.
Quero Fazer ParteConheça também a campanha Corte o Ódio, Conecte Igualdade.




