Misoginia Estrutural e Cultura Digital: a “machosfera” e a nova tipificação legal
A ascensão da machosfera mostra como o ódio às mulheres se reinventa online. Aprovado na CCJ, o PL 896/2023 reconhece a misoginia como discriminação estrutural e avança para a Câmara.
A nova misoginia na cultura digital
A chamada machosfera — um conjunto de comunidades virtuais que orbitam a rejeição às conquistas femininas e a exaltação de uma masculinidade hegemônica — é o laboratório onde a misoginia contemporânea se reorganiza. Em fóruns, canais e grupos, discursos “red pill” e correntes como MGTOW se apresentam como autopreservação masculina, mas propagam a ideia de que o feminismo seria uma ameaça e de que as mulheres seriam inimigas simbólicas. O resultado é a naturalização de estereótipos de gênero e de narrativas que depreciam, culpabilizam e silenciam mulheres.
A machosfera transforma ressentimentos individuais em ideologia e mercado. Cursos pagos, “mentorias alfa” e conteúdos de “desenvolvimento” mascaram hostilidade, controle e hierarquias de gênero. O ambiente algorítmico — que premia a indignação — amplifica esse ciclo.
Quem compõe a machosfera (em linhas gerais)
- Red pill: defende “reconquistar” a virilidade subordinando mulheres e instrumentalizando relações.
- Incel (involuntary celibate): culpabiliza mulheres pela própria vida sexual e dissemina ódio — também contra pessoas LGBTQIA+.
- MGTOW (Men Going Their Own Way): prega evitar relações com mulheres, vistas como ameaça em razão do avanço de direitos.
Embora nem todo conteúdo seja explicitamente agressivo, o conjunto reforça uma gramática de deslegitimação das mulheres: elas seriam excessivas, interesseiras, “privilegiadas” — ou, no limite, descartáveis.
Do online ao cotidiano: como a misoginia atravessa a vida
A misoginia não aparece apenas como crime explícito. Ela se infiltra em falas, gestos e práticas normalizadas. Exemplos frequentes:
- Desqualificar mulheres como “mandonas”, “emocionais” ou “loucas” (gaslighting).
- Interromper falas de mulheres (manterrupting) e reembalar suas ideias como próprias (bropropriating).
- Reduzir competência a aparência, sexualizar ou ridicularizar lideranças femininas.
- Naturalizar desigualdade no trabalho: “ajuda” doméstica masculina, expectativa de “trabalho emocional”.
- Culpabilizar vítimas por roupas, conduta ou por denunciar violência.
- Tratar tarefas e profissões como “não coisa de mulher/menina”.
Nomear essas práticas é condição para enfrentá-las.
Avanço jurídico: misoginia como discriminação estrutural
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou o PL 896/2023, que propõe incluir a misoginia — o ódio ou aversão às mulheres — no rol de crimes da Lei 7.716/1989 (Lei do Racismo). O texto reconhece que a discriminação de gênero opera estruturalmente e que o enfrentamento deve ir além de ofensas individuais. A proposta segue para a Câmara dos Deputados (salvo recurso ao Plenário).
A relatoria destacou o caráter educativo e o foco em condutas graves que expressam rejeição, humilhação ou ódio às mulheres — práticas que, normalizadas, sustentam exclusão e violência. O objetivo não é punir debate legítimo, mas responsabilizar atos que ferem direitos. Em suma, o PL alinha a proteção de mulheres às demais formas de discriminação já tipificadas.
O que já existe: a Lei 13.642/2018 (Lei Lola) atribuiu à Polícia Federal investigar crimes online de ódio contra mulheres.
O que avança com o PL 896/2023: reconhecimento explícito da misoginia na Lei 7.716, alinhando-a a outras formas de discriminação já tipificadas.
Por que tipificar importa (e para quem)
- Reconhece a dimensão coletiva do dano: misoginia atinge todas as mulheres, não apenas casos isolados.
- Orienta políticas públicas: educação, prevenção, responsabilização e proteção às vítimas.
- Atualiza o Estado de Direito para o digital: redes não são “terra sem lei”.
Caminhos de enfrentamento: do indivíduo ao coletivo
- Educação midiática: identificar desinformação, culto “alfa” e discurso disfarçado de autoajuda.
- Protocolos em plataformas: denunciar assédio, ameaças e ódio; registrar evidências (prints, URLs, datas); guardar nº do BO e laudos.
- Ambiente de trabalho: treinar equipes, coibir assédio e mansplaining, valorizar liderança feminina.
- Política institucional: apoiar marcos legais que protejam participação de mulheres e punam violência política de gênero.
- Rede de apoio: fortalecer coletivos, defensorias públicas e Ministério Público; suporte psicológico e jurídico especializado.
 
															 
															



