Da invisibilidade ao recomeço: a travessia de Léo Motta

Da invisibilidade ao recomeço: a travessia de Léo Motta | ACCA
Autonomia Feminina · Vozes que Giram o Mundo

Da invisibilidade ao recomeço: a travessia de Léo Motta

uma história que a cidade quase perdeu
Léo Motta na Bienal do Livro
Léo Motta na Bienal do Livro – sua quarta participação consecutiva como convidado
Existem vidas que carregam perdas muito antes de chegarem à rua. Antes do papelão no chão, houve infância, vínculos, afetos e rupturas profundas. No episódio do Autonomia Feminina — Vozes que Giram o Mundo, a trajetória de Léo Mota atravessa exatamente esse território: o que existe antes da rua e o que a sociedade insiste em não enxergar depois dela.
Márcia Pêla, Bruna Porto, Léo Mota e Jade durante a gravação do programa Autonomia Feminina
Márcia Pêla, Bruna Porto, Léo Mota e equipe auau durante a gravação do programa

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Léo é escritor, educador social e hoje referência nacional quando o assunto é população em situação de rua. Mas sua história não nasce no estigma. Ele fala de uma infância pobre, mas profundamente marcada pelo amor, criada por uma avó que foi sua base afetiva. A perda dessa figura materna, ainda na adolescência, inaugura uma sequência de lutos, deslocamentos e escolhas que o levaram ao uso de drogas, à dependência química e, anos depois, à rua.

quando a estrutura falha, não o indivíduo

A narrativa de Léo desmonta um dos mitos mais violentos do imaginário social: a ideia de que alguém está na rua porque quer. “A rua não é um direito, é uma violação”, afirma. Assim, onde faltam saúde, educação, trabalho, renda e moradia, sobra abandono institucional. Consequentemente, a rua surge como resultado dessa ausência, nunca como escolha.

a dor que não encontrou amparo

Aos 21 anos, Léo viveu a maior tragédia de sua vida: o assassinato de seu filho de cinco meses pela própria mãe da criança. Naquele momento, como jovem morador de comunidade já em uso de drogas, não encontrou apoio psicológico — porém, encontrou o ponto de venda. Foi ali que buscou silenciar uma dor sem nome. Durante duas décadas, portanto, usou drogas na esperança de ser feliz, até descobrir que era preciso escolher: “ou feliz, ou usuário”.

um ano e três meses nas calçadas

Aos 35 anos, após uma overdose diante da mãe, tomou uma decisão para poupá-la do sofrimento: foi para as ruas do Rio de Janeiro. Durante um ano e três meses, então, experimentou a fome, o frio, a violência gratuita e a indiferença cotidiana. Por exemplo, um segurança lhe deu água com sal quando pediu água gelada. Além disso, uma mulher cuspiu em seu rosto quando pediu pão. No entanto, também encontrou gestos de cuidado: pessoas que estenderam a mão, assistentes sociais que mostraram caminhos, educadores que não desistiram.

“Ninguém é melhor ou pior por estar ou não na rua. Qualquer pessoa pode chegar ali. E todas podem sair, quando existe rede.”

a palavra como ferramenta política

“Quem grita nunca é ouvido”, diz Léo. Por isso, escolheu a escrita. Depois de sair da rua — com apenas uma internação, limpo há 8 anos — criou uma página nas redes sociais para contar sua história e denunciar a violência contra quem vive nas calçadas. Em 7 dias, já tinha 30 mil seguidores. O alcance inesperado se transformou em livro. Depois, em trilogia.

Hoje, Léo é possivelmente o único ex-morador de rua no mundo a publicar três livros sobre essa vivência. Em suas páginas, relata diferentes perfis da população em situação de rua no Rio de Janeiro — cidade com 7.865 pessoas nessa condição, sendo que 80% já fizeram uso de álcool ou outras drogas.

São histórias como a de Carlete, travesti violentada pelo pai aos 11 anos ao descobrir sua orientação sexual e jogada nas ruas. Como a de pessoas vivendo com HIV em fase terminal nas calçadas. Como a de Bet.

onde a lei maria da penha não chega

Bet é uma das histórias mais duras contadas por Léo. Mulher em situação de rua, usuária de crack, portadora de HIV, deu à luz a 3kg na rua. Não pôde dar o seio. Posteriormente, foi agredida pelo companheiro e procurou uma delegacia. Ali, então, orientaram que fizesse boletim de ocorrência online — “uma mulher em situação de rua que não tinha nem roupa”, denuncia Léo. Além disso, pediram seu endereço. Bet forneceu: “Esquina da Rua da Amargura, onde a Maria da Penha não chega”.

violência multiplicada

Muitas mulheres, de fato, chegam às ruas fugindo da violência doméstica. Bet, por exemplo, escolheu sofrer violência de um companheiro “porque quando estou com Paulo, só apanho do Paulo, não sou mais estuprada por três homens como já fui naquela calçada”. Portanto, são corpos triplamente violentados: pela ausência do Estado, pela sociedade e por quem deveria protegê-las.

projeto menina moça mulher

Esse compromisso, consequentemente, levou Léo a se tornar embaixador do projeto Menina Moça Mulher, no Rio de Janeiro, que atende mulheres em vulnerabilidade com serviços de saúde, apoio psicológico, jurídico, 40 cursos profissionalizantes gratuitos e aulas de defesa pessoal. A proposta é clara: autonomia não é discurso, é estrutura de proteção.

Léo Motta
Léo Motta: “A rua não é um direito, é uma violação”

recusar o lugar de exceção

A sociedade, frequentemente, adora celebrar histórias individuais de superação para esconder seu próprio fracasso coletivo. Assim, quando alguém “vence”, o sistema se absolve com o discurso do “quem quer, consegue”. No entanto, a história de Léo faz o movimento inverso: denuncia. Dessa forma, mostra que nenhuma trajetória deveria depender de dor extrema para existir dignamente.

uma vida entre conquistas e responsabilidade

Hoje, Léo trabalha na Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro, dá palestras em escolas, participa de programas de TV e está em processo de candidatura ao Guinness Book. Atualmente, mora com vista para o mar, tem seus livros publicados, mas não se considera feliz. “Não sou feliz porque do lado de fora tem gente”, explica.

Seu maior medo agora é esquecer de onde veio, embriagar-se pelo caminho da vaidade. Por isso, segue voltando às calçadas, às escolas, aos projetos sociais. Na última Bienal do Livro — sua quarta consecutiva como convidado — recusou o lugar simbólico de “exemplo isolado”. Ao contrário, levou 10 pessoas em situação de rua ao palco para lerem suas próprias poesias. Além disso, nos telões, projetou: “População em situação de rua desde 13 de maio de 1888”.

“Vai passar. A dor passa. O momento passa. Mas a responsabilidade coletiva não pode passar em branco.”

“O canto onde a cidade tenta nos esquecer”

Por Jade Klaiser

A vida tem um jeito próprio de engolir pessoas.

Não engole de uma vez — ela vai mordendo pelas bordas, arrancando os nomes, desbotando os rostos, empurrando para o canto aqueles que “não deram certo”. Para um canto onde ninguém precisa olhar por muito tempo.

E assim, muitas pessoas acabam vivendo como se fossem sombras. Sombras do que deram certo, sombras de uma ideia de normalidade, sombras de um projeto social que só funciona para alguns.

Essas pessoas são todas aquelas que são diferentes. Diferentes de um padrão, de uma expectativa, de um rascunho de futuro que alguém imaginou para elas. Portanto, são os incompreendidos, os que falharam dentro de uma estrutura que já era falha antes deles nascerem.

Um artista que ninguém viu. Uma dúvida sobre o gênero. Um conflito com a própria sexualidade. A violência dentro de casa. O álcool. A droga. A neurodivergência. A fatalidade. O desemprego. A falta de escola, de oportunidade, de rede. Além disso, a desigualdade que escolhe seus alvos antes mesmo que eles aprendam a assinar o próprio nome.

O motivo é sempre individual, cheio de nuances e histórias profundas. No entanto, a falha é coletiva. É social.

Dessa forma, a sociedade falha, falhou e seguirá falhando enquanto se recusar a olhar para isso: pessoas dormindo nas ruas, vivendo sem documentos, sem comida, sem casa, sem horizonte — são fracassos de todos nós.

Antes da rua, sempre houve uma casa. Antes da queda, sempre houve um vínculo. Antes da dor, sempre houve um amor.

E quando essas pessoas chegam aos cantos, a cidade — e a vida — tentam apagá-las.

O apagamento começa no vocabulário: mendigo, noia, inválido, carga, problema. Palavras que não descrevem ninguém, mas servem perfeitamente para aliviar a consciência de quem observa de longe. Afinal, desumanizar é sempre o caminho mais rápido para não se responsabilizar.

E assim a cidade constrói um silêncio que não é ausência de som, mas de escuta. Consequentemente, um silêncio que esconde vidas inteiras atrás de estatísticas.

Mas existe ainda outra camada desse apagamento — a mais traiçoeira de todas: a narrativa da superação individual.

Porque, apesar de ser um fracasso social, o sistema adora transformar sobrevivência em milagre pessoal. Portanto, quando alguém consegue voltar, se erguer, criar, estudar, escrever — como Léo — a sociedade corre para dizer: “Viu? Quem quer, consegue.”

Mas até nisso a história do Léo nos dá uma aula. Quando ele conta a própria trajetória, ele não romantiza a rua — ao contrário, ele denuncia. Diz, sem rodeios: “estar na rua não é um direito, é uma violação.”

E ao dizer isso, ele desloca o foco: tira o peso da culpa do indivíduo e devolve ao Estado, à sociedade, às estruturas que empurram pessoas para o canto e depois chamam de triunfo aquilo que deveria ter sido proteção.

E mais: quando o Léo segue no trabalho social, quando usa a dor e a história como ferramenta para alcançar outras vidas, ele nos mostra o tamanho da falha. Porque, mesmo depois de toda a superação, de toda a força, de toda a coragem — ele ainda precisa ser agente. Ainda precisa estar afetado. Ainda precisa estar incluído no processo de cuidado.

E isso revela um absurdo: não é possível que continuemos aceitando que apenas quem sofreu precise puxar a corda do mundo. Não é possível que a gente espere que pessoas saiam dos cantos, sobrevivam, reescrevam suas histórias e ainda tenham a obrigação moral de inspirar os outros, enquanto o restante da sociedade segue intacto, confortável, distante.

Dessa maneira, a história do Léo escancara que um processo de apagamento é sempre causa e consequência — e que a reconstrução de uma vida, a reinserção de uma pessoa na sociedade, a reabilitação digna de alguém que quase desapaeceu, não pode ser responsabilidade exclusiva do indivíduo.

Tem que ser responsabilidade de todos nós. De quem acolhe, de quem governa, de quem formula política pública, de quem olha, de quem escuta, de quem existe na mesma cidade.

Sem estrutura, não há mérito possível. Sem rede, até a força pessoal é engolida junto com tudo o mais. Portanto, celebrar apenas o indivíduo é apagar de novo a obrigação coletiva — e as vidas que não tiveram a mesma chance.

A história do Léo não é um troféu individual. É um espelho do que deveria ser garantido a todos. É a prova de que o cuidado funciona — quando existe. É o lembrete de que ninguém se salva sozinho — e nem deveria precisar.

Porque a vida até pode tentar engolir pessoas. Mas somos nós — sempre nós — que decidimos se vamos assistir ao apagamento em silêncio ou se vamos virar a mesa e reconstruir um mundo onde ninguém precise se esconder nos cantos para continuar existindo.

📌 Serviço

Projeto Menina Moça Mulher

Avenida Mem de Sá, 254 – Centro, Rio de Janeiro

Atendimento: segunda a sexta-feira, a partir das 9h

Léo Motta

Instagram: @leomota_escritor

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