Do Estúdio ao Blog:A Palavra como Território com Jordânia Bispo

Do Estúdio ao Blog: A Palavra como Território com Jordânia Bispo | ACCA

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A Palavra como Território com Jordânia Bispo

Quando mulheres — sobretudo mulheres negras — tomam a palavra, descolonizam o silêncio e transformam linguagem em território de existência política.

Do Estúdio ao Blog transforma as conversas do programa ACCA: Autonomia Feminina em textos que aprofundam contextos, trajetórias e ferramentas de ação. Nestes episódios, Jordânia Bispo, comunicadora, educadora e mestre em comunicação, dialoga com Márcia sobre voz, corpo, poder, racismo, silenciamento e assertividade, e mostra por que a comunicação é território de disputa política e epistemologia do cuidado.

A palavra das mulheres, especialmente das mulheres negras, sempre carregou interdições, interrupções e deslegitimações. Mas também carrega sabedoria, resistência e transformação. Nos Episódios 21 e 22, Jordânia reconstrói sua trajetória entre jornalismo, militância e educação popular, e revela como comunicação consciente, teoria crítica e escuta ativa podem descolonizar existências e reconfigurar territórios.

O Silenciamento como Dispositivo de Poder

O silenciamento não é acidente histórico: é dispositivo estrutural de controle. Como demonstra Grada Kilomba em Memórias da Plantação, a boca foi historicamente colonizada como órgão de opressão: da máscara de Anastácia ao impedimento contemporâneo de mulheres negras ocuparem espaços de fala autorizada. O que está em jogo não é apenas o ato de calar, mas a interdição epistêmica: negar que certas vozes produzem conhecimento legítimo.

Jordânia propõe o movimento inverso: resgatar a comunicação como território político de disputa e epistemologia do cuidado. Filha de Dona Luz Maria (mulher preta) e de Neurivan Conceição Rocha (homem branco), ela reconhece na própria genealogia o atravessamento de mundos racializados e as tensões fundantes do Brasil. “Eu gosto de pensar que o encontro deles deu origem a essa mulher que vos fala”: uma existência que já nasce marcada por hierarquias raciais, mas também pela potência de quem habita fronteiras e disputa sentidos. A fala, a escuta e o gesto tornam-se, em sua perspectiva, estratégias de emancipação individual e coletiva.

“A comunicação é ferramenta de poder. Quando uma mulher fala, ela ilumina o espaço que ocupa — e isso, em si, é revolução.” — Jordânia Bispo

Comunicação como Território: Ocupar, Nomear, Existir

Território, na geografia crítica, não é apenas espaço físico: é espaço de poder, de relações, de disputas simbólicas e materiais. Quando Jordânia define a comunicação como território, ela a posiciona no campo do político: aquilo que se conquista, se defende, se compartilha ou se privatiza. A palavra é território porque delimita quem pode falar, sobre o quê, para quem e com qual legitimidade.

Mulheres negras, historicamente expulsas dos territórios do saber formal e da autorrepresentação, precisam disputar o direito à palavra a cada enunciação. Como argumenta Djamila Ribeiro em O Que É Lugar de Fala, não se trata de hierarquizar opressões, mas de reconhecer que sujeitos subalternizados têm sua capacidade epistêmica negada. Falar, portanto, é ato de re-existência: inscrever-se no mundo que tentou apagá-las.

Jordânia narra como descobriu sua vocação ao perceber que pessoas incríveis — sobretudo mulheres — não ascendiam profissionalmente porque não eram vistas. “O que não é falado não existe”, afirma. Se a palavra cria realidade, o silenciamento produz inexistência social. Romper com ele exige não apenas voz, mas consciência de onde se fala, com quem e contra quais estruturas.

Corpo, Voz e Política: A Dimensão Material da Comunicação

Jornalista de formação e mestre em comunicação, Jordânia recusa a romantização da comunicação como talento natural ou “dom de nascença” — essa ideia que serve, historicamente, para desqualificar o trabalho intelectual de mulheres e negar acesso ao conhecimento formal. “A prática precisa de teoria. Sem teoria, você está executando o pensamento de outra pessoa”, adverte. Esta é uma posição epistemológica radical que opera em dois movimentos simultâneos: primeiro, rejeita a hierarquia que subordina saber prático ao saber teórico (como se teoria fosse prerrogativa masculina e branca, enquanto prática seria destino das subalternas); segundo, exige que a prática seja práxis — ação refletida, politicamente consciente, capaz de nomear as estruturas que tenta transformar.

A comunicação nasce no corpo: território primeiro de linguagem. O corpo que gesticula, que silencia, que ocupa espaço ou se encolhe. O corpo racializado e generificado, que carrega marcas históricas de violência e resistência. Comunicar é, portanto, corporificar sentido: tornar comum não apenas através das palavras, mas da presença encarnada no mundo.

O Tripé da Comunicação Consciente

Nos episódios, Jordânia propõe três pilares para uma comunicação que liberta:

1. Autoconhecimento: Conhecer-se é condição para nomear-se. Quem sou eu? De onde falo? Quais afetos, traumas e saberes carrego? O autoconhecimento é a base da autonomia, e autonomia, como a ACCA reafirma, se constrói coletiva e individualmente.

2. Domínio da linguagem verbal: A língua não é neutra. Ela carrega ideologias, hierarquias, violências naturalizadas. Dominar a língua é também descolonizá-la — perceber onde ela reproduz sexismo, racismo, classismo. É saber nomear a própria experiência sem depender das categorias do opressor.

3. Consciência da linguagem não verbal: Postura, tom de voz, expressão facial, ocupação do espaço. Tudo comunica. Uma mulher que se curva, que pede desculpas antes de falar, que se minimiza corporalmente, está comunicando subalternidade. Consciência corporal é, portanto, prática de liberdade.

“Estar calada diante de uma injustiça é também uma forma de comunicar — e nem sempre é a forma mais ética.” — Jordânia Bispo
Jordânia Bispo e Márcia Pelá durante gravação

Márcia Pelá e Jordânia Bispo durante a gravação dos episódios 21 e 22 — Foto: ACCA / 2025

Comunicação Assertiva: Para Além da Cordialidade

Jordânia diferencia comunicação assertiva de simplesmente “falar bem” ou “ser educada”. Ser assertiva é fazer-se compreender sem violentar o outro, mas também sem abrir mão da própria verdade. É o equilíbrio entre firmeza e empatia: uma negociação constante entre o que se quer dizer e como o outro pode escutar.

Mas atenção: a cobrança de assertividade recai desigualmente sobre corpos femininos. Homens que falam alto são “líderes natos”; mulheres que fazem o mesmo são “histéricas”. Mulheres negras que se posicionam enfrentam o estereótipo da “mulher raivosa”. Assertividade, portanto, não pode ser performance de docilidade: é afirmação política da própria existência.

Ruído como Violência Simbólica e Escutativa como Ética

Jordânia introduz o conceito de ruído: tudo aquilo que perturba o entendimento. Emoções descontroladas, preconceitos, falta de atenção, contextos sociais discrepantes. O ruído não é apenas falha técnica: é produto de relações de poder. Quando uma mulher negra fala e não é ouvida, o ruído é o racismo estrutural. Quando uma mulher é interrompida sistematicamente, o ruído é o machismo.

A solução que Jordânia propõe é a escutativa, neologismo que ela empresta do educador Paulo Freire. Escutativa é escuta ativa, corporificada, ética. Escutar não é apenas ouvir: é acolher, suspender julgamentos, criar espaço para que o outro se enuncie plenamente. É epistemologia do cuidado traduzida em prática comunicativa.

“Se a comunicação se perde, o relacionamento enfraquece.” Jordânia nos lembra que comunicar é tornar comum, criar vínculos. Sem escuta, não há vínculo — apenas monólogos paralelos, incomunicabilidade, solidão coletiva.

Resistência Epistêmica: Contra o Epistemicídio

Boaventura de Sousa Santos cunhou o termo epistemicídio: o assassinato de saberes subalternizados. Mulheres, pessoas negras, indígenas, periféricas tiveram seus conhecimentos desqualificados como não-científicos, não-racionais, não-universais. O epistemicídio é complementar ao genocídio: não basta matar corpos, é preciso apagar memórias, línguas, cosmologias.

Quando Jordânia afirma que a prática precisa de teoria, ela está combatendo o epistemicídio. Está dizendo: o saber das mulheres negras não é intuitivo, natural, visceral, é epistêmico. Pode e deve ser teorizado, sistematizado, legitimado. A comunicação que liberta é aquela que se reconhece como produção de conhecimento, não apenas transmissão de informação.

Ao usar seu conhecimento para educar e empoderar outras mulheres, Jordânia materializa o que a ACCA defende há 23 anos: autonomia se constrói quando teoria e prática se encontram, quando o saber acadêmico dialoga com a militância de base, quando vozes plurais tecem redes de apoio mútuo.

“A comunicação que transforma começa dentro: primeiro comigo, depois com o outro, depois com o mundo.” — Jordânia Bispo

A Palavra que Cura, a Palavra que Fere

bell hooks nos ensinou que palavras machucam. Mas também curam. A linguagem é campo de batalha — pode reproduzir opressões ou ser ferramenta de libertação. Jordânia nos convida a uma ética da palavra: falar com responsabilidade, escutar com generosidade, nomear as violências sem perpetuá-las.

Entre teoria e afeto, corpo e gesto, silêncio e voz, Jordânia defende que comunicar é construir território: simbólico, político, existencial. A palavra, quando nasce do corpo consciente e da escuta atenta, é simultaneamente abrigo e arma. É lugar de pertencimento e instrumento de luta. Transforma-se em resistência cotidiana, capaz de mover relações, reescrever histórias e reinventar destinos.

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