
“Isolar uma mulher é expulsá-la do mundo. As redes de apoio são o primeiro passo para trazê-la de volta.” – Iarle Sousa Ferreira
Sororidade e redes de apoio: a visão de Iarle Sousa Ferreira sobre o poder das mulheres unidas
Transcrição adaptada do programa ACCA: Autonomia Feminina
Do Estúdio ao Blog é o espaço onde transcrevemos e adaptamos os episódios do programa
ACCA: Autonomia Feminina. A cada semana, reunimos dois episódios gravados com cada convidada ou convidado
em uma entrevista única, para que você possa ler, compartilhar e revisitar os diálogos que nos inspiram a construir autonomia.
Nesta edição, quem chega até nós é Iarle Sousa Ferreira — filósofa, educadora e ativista com forte atuação em projetos de apoio às mulheres e em iniciativas comunitárias. Sua trajetória é marcada pela defesa da educação feminista como ferramenta de transformação e pela crença de que o pensamento crítico e a arte são caminhos para romper silêncios e construir autonomia.
Com uma fala lúcida e profundamente afetiva, Iarle reflete sobre sororidade, redes de apoio e isolamento das mulheres, discutindo como o patriarcado opera para afastar, silenciar e dominar — e como a união entre mulheres pode reconstruir vidas, fortalecer comunidades e reinventar formas de existência.
A seguir, leia a entrevista adaptada dos episódios do programa com Iarle Sousa Ferreira.
A Entrevista
ACCA Autonomia Feminina: Professora Iarle, o tema deste episódio é redes de apoio e sororidade na prática.
Antes de entrarmos no assunto, gostaria que você nos ajudasse a compreender o que significa, afinal, sororidade —
um conceito tão presente no feminismo, mas também alvo de diferentes interpretações.
Iarle Sousa Ferreira: Há uma certa decepção em relação ao conceito de sororidade porque, muitas vezes, ele é entendido de forma universal. E o que precisamos compreender é que não existe uma sororidade universal, porque nós, mulheres, não vivemos realidades iguais. O que temos em comum é a opressão patriarcal — essa sim é universal.
A sororidade acontece quando uma mulher reconhece na dor da outra algo que também a atravessa. Pode surgir espontaneamente, por empatia, ou ser construída conscientemente, como um pacto político. É um espaço de confiança entre mulheres que se reconhecem como irmãs e não como rivais.
Existe ainda o conceito de dororidade, criado por Vilma Piedade, uma mulher preta brasileira.
A dororidade é o encontro das mulheres negras em torno de um sofrimento que é de gênero, mas também de classe e de raça.
É uma ampliação necessária dessa ideia de irmandade — um chamado à solidariedade interseccional.
O isolamento como forma de dominação
ACCA Autonomia Feminina: Você trouxe uma reflexão interessante sobre o isolamento como forma de dominação.
O que significa, na prática, uma mulher estar isolada?
Iarle Sousa Ferreira: Isolar é uma das formas mais cruéis de dominação.
Quando uma mulher é isolada, ela é expulsa do mundo. Perde o contato com a realidade e passa a duvidar de si mesma.
É o passo seguinte ao constrangimento, à humilhação e ao silenciamento.
Na sociedade atual, o isolamento é potencializado por um modo de vida individualista, pelo capitalismo e pela lógica da pressa. As mulheres isoladas perdem sua rede social e, sem ela, tornam-se mais vulneráveis à violência e ao controle.
O isolamento é o primeiro passo para a anulação — e, muitas vezes, para a morte.
A força das redes de apoio
ACCA Autonomia Feminina: Nesse contexto, qual é o papel das redes de apoio e da sororidade como ação concreta?
Iarle Sousa Ferreira: As redes de apoio são o primeiro passo para a libertação.
Em uma turma de mulheres adultas, durante uma aula sobre direitos, uma aluna contou como foi impedida de sair de casa por anos.
O marido a mantinha presa, e os vizinhos achavam “estranho”, mas não se metiam.
O que salvou essa mulher foi uma ação coletiva: uma agente de saúde percebeu, juntou outras mulheres da comunidade
e conseguiram ajudá-la a sair. Isso é sororidade em prática.
Ela não salva sozinha, mas é um instrumento de resistência — o primeiro gesto de empatia que abre o caminho para a reconstrução da vida.
Sororidade não é caridade
ACCA Autonomia Feminina: E como podemos criar e manter essas redes verdadeiras entre mulheres?
Iarle Sousa Ferreira: Primeiro, precisamos entender que sororidade não é caridade.
Caridade é vertical — quem tem ajuda quem não tem. Sororidade é horizontal — é uma troca, um reconhecimento de que temos algo em comum.
É uma relação de confiança e afeto.
O trabalho que desenvolvo junto a outras mulheres se chama “Nós por Nós”, um grupo de apoio a mulheres em situação de violência que se reúne semanalmente. Lá, nós conversamos, trocamos experiências e criamos alternativas concretas de autonomia, como um jornal produzido pelas próprias participantes.
Porque falar é importante, mas agir é essencial — e a autonomia financeira é parte dessa luta.
Troca de saberes e interseccionalidade
ACCA Autonomia Feminina: Você também desenvolve ações dentro da universidade. Como o feminismo e a educação se cruzam nesse trabalho?
Iarle Sousa Ferreira: No Instituto Federal de Goiás, trabalhamos com um projeto chamado
“Troca de Saberes entre Mulheres: Cultivando Afeto e Tecendo Ações”. É um espaço de politização, formação e escuta.
Lá, as mulheres compreendem que o isolamento é uma forma de violência e que romper esse ciclo exige consciência e apoio coletivo. Esse trabalho é um diálogo entre o saber acadêmico e os saberes populares — das mulheres de terreiro, das indígenas, das trabalhadoras. É uma troca real, horizontal. Cada mulher traz um conhecimento, uma dor e uma alegria que se somam à experiência do grupo.
A educação feminista é, antes de tudo, um processo de **reconhecimento e reconstrução de si**.
Autonomia como processo coletivo
ACCA Autonomia Feminina: Para encerrar, como você compreende o conceito de autonomia na sua própria trajetória?
Iarle Sousa Ferreira: A autonomia não é apenas financeira — embora ela seja fundamental.
É também emocional, política e existencial. É ser dona de si, saber o que se quer, romper com as opressões que fazem com que a mulher duvide do próprio valor.
Eu conquistei minha autonomia financeira cedo, mas precisei lutar muito por outras formas de autonomia — como a de existir em um ambiente de trabalho sem assédio.
A autonomia se constrói em camadas, no encontro com outras mulheres, na partilha, na coragem e no afeto.
Ser autônoma é ser livre, mas também estar em rede.
Este conteúdo integra o projeto Do Estúdio ao Blog, que transforma em leitura as vozes do programa
ACCA: Autonomia Feminina.
A cada semana, uma entrevista adaptada dos episódios chega até você em formato acessível e inspirador.
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