
A violência doméstica é uma chaga social que assola o Brasil, manifestando-se de diversas formas e deixando cicatrizes profundas em milhões de mulheres.
Longe de ser um problema isolado, os números revelam uma realidade alarmante: a cada dia, incontáveis brasileiras enfrentam o medo, a agressão e, em muitos casos, a ameaça de morte dentro de seus próprios lares.
Na Associação Cultura Cidade e Arte (ACCA), acreditamos que a informação é o primeiro passo para a transformação.
Esta matéria busca aprofundar a compreensão sobre essa complexa questão, explorando dados estatísticos, relatos impactantes de vítimas e sobreviventes, e o arcabouço legal e as políticas públicas que buscam combater essa epidemia de violência, destacando também o papel fundamental de organizações como a nossa.
A Realidade em Números: Uma Epidemia de Violência
Os dados estatísticos pintam um quadro sombrio da violência doméstica no Brasil, revelando a magnitude do problema. De acordo com pesquisas recentes, 21,4 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses [1]. Dentre essas, 5,3 milhões de mulheres, o que representa 10,7% da população feminina do país, relataram ter sofrido abuso sexual [1].
Um dos aspectos mais aterrorizantes dessa realidade é a ameaça de morte. A reportagem da Agência Patrícia Galvão, que serve como ponto de partida para esta análise, revela que duas em cada 10 mulheres (21%) já foram ameaçadas de morte por parceiros atuais ou ex-parceiros românticos . Essa incidência é ainda mais alarmante quando se observa o recorte racial: enquanto em mulheres brancas a taxa foi de 16%, no grupo de mulheres negras, esse percentual salta para 26%, uma diferença de 10 pontos percentuais que escancara a interseccionalidade da violência [2].
O medo de ser morta é uma realidade para 44% das mulheres ameaçadas, e, embora, 37% delas tenham denunciado à polícia, a decisão de romper o relacionamento é complexa e nem sempre imediata . Curiosamente, mulheres pretas tendem a terminar mais o relacionamento (19%) em comparação com mulheres brancas (10%) após as ameaças, e são mais propensas a denunciar (13% das mulheres pretas versus 6% das mulheres brancas). O pedido de medida protetiva segue a mesma tendência, com mulheres pretas apresentando o dobro de reação (6%) em relação às mulheres brancas (3%) .
O feminicídio, a forma mais brutal da violência de gênero, continua a crescer no país. Em 2024, o Brasil registrou o maior número de feminicídios da série histórica, com 1.492 mulheres [5], o que equivale a uma média de quatro mortes por dia [6]. A análise do perfil das vítimas revela que 63,6% das mulheres assassinadas eram negras e 70,5% tinham entre 18 e 44 anos [7].
A violência doméstica não é um problema isolado, mas uma teia complexa de agressões que muitas vezes culminam em tragédias. A maioria das entrevistadas (61%) conhece ao menos uma mulher que já foi ameaçada de morte pelo atual/ex-parceiro ou namorado . A reação mais comum ao saber de uma situação de ameaça de outra mulher é procurar a polícia (64%), mas, infelizmente, apenas 6% das mulheres admitem não se envolver com a situação de ameaça de outra vítima .
Metade das mulheres ameaçadas conhecidas pelas entrevistadas temem serem mortas pelo agressor. Embora 1 em cada 3 mulheres ameaçadas tenha denunciado à polícia e pedido medida protetiva, apenas 1 em cada 4 terminou o relacionamento após um longo período de violência . Esses números ressaltam a urgência de ações mais eficazes e de uma rede de apoio robusta para as vítimas.
Vozes da Resistência: Depoimentos e Histórias Reais

Por trás dos números frios, existem histórias de dor, medo e, em muitos casos, de superação. Relatos de vítimas de violência doméstica revelam a crueldade e a perversidade de agressores, muitas vezes pessoas próximas e de confiança. Em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, uma delegacia especializada registrou mais de 3,8 mil casos de violência contra a mulher em 2018, com relatos que incluem facadas, ameaças de morte e socos [8].
Uma das vítimas, cuja identidade foi preservada, contou ao G1 que precisou subir no telhado de casa para fugir do companheiro que a atacava com uma faca. Ela relatou também uma ameaça ainda mais aterrorizante:
“Uma vez, ele falou que ia me dar umas facadas só na amizade. Ele estava com raiva de mim, a gente estava brigado. Eu dormi e ele ficou a madrugada todinha me vendo dormir. Quando eu acordei no dia seguinte ele falou: ‘Fiquei acordado vendo você dormir com vontade de te dar umas facadas só na amizade. Só não fiz isso porque não ia valer a pena” [8].
Outro depoimento chocante é o de uma mulher que, após cinco anos de maus-tratos, tinha medo de denunciar o marido por ele alegar ter amigos policiais e milicianos. Ela descreveu a relação abusiva:
“Ele me vê como se eu fosse um animal. Eu tenho que fazer todas as vontades dele, não posso usar um short curto, não posso interagir com colegas, família. Eu não posso nem visitar a minha mãe, tenho que ficar trancada dentro de casa e fazer todas as vontades dele” [8]
No entanto, em meio a tanta dor, há também histórias de resiliência e superação. Maria, de 42 anos, após anos de sofrimento e tratamento, decidiu usar sua própria história para ajudar outras mulheres. Ela dá palestras no Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM), uma ONG que oferece apoio jurídico e psicológico.
“Eu falo muito isso nas minhas palestras, eu não fiquei viva à toa. Eu acho que nada acontece em vão, hoje eu dou meu testemunho para as mulheres se encorajarem e denunciarem, elas devem sair de um relacionamento assim também”, encoraja Maria [9].
Thayse Caldas, outra sobrevivente, percebeu que vivia em um ciclo de violência doméstica após participar de palestras do CDDM. Ela relata que, ao tentar montar um negócio próprio, a violência de seu marido se intensificou, culminando em uma briga em que ele quase a jogou da escada. Mesmo após denunciar e retirar a medida protetiva por pressão, a violência piorou, levando-a a denunciar novamente. Hoje, Thayse se prepara para palestrar e incentivar outras mulheres a romperem o ciclo da violência:
“Eu quero palestrar sobre esse tema, porque eu sei que tem pessoas que precisam escutar essa história, para entender o que vivem e sair disso. Dizer não. Eu consegui ver a violência que passei, da melhor forma, alertando outras mulheres, explicando o que é a violência” [9].
A história de Madalena, que sofreu violência doméstica por 10 anos, é outro exemplo de superação. Ela descreve o relacionamento como “muito abusivo”, com violência física e verbal. Mãe de uma criança com deficiência, Madalena encontrou no filho a força para seguir em frente:
“Foi nele que eu achei apoio, foi ele o motivo”. Após cinco anos, ela conseguiu se reerguer e refazer sua vida: “Antes, isso me machucava muito, até para falar, sabe? Eu começava a chorar. Hoje eu já consigo contar sobre o meu passado sem tanta mágoa” [10].
Esses depoimentos são um lembrete contundente de que a violência doméstica é uma realidade multifacetada, que exige não apenas punição aos agressores, mas também apoio integral às vítimas para que possam reconstruir suas vidas e encontrar a liberdade.
O Arcabouço Legal e as Políticas Públicas de Combate à Violência
O Brasil tem avançado na criação de um arcabouço legal e de políticas públicas para combater a violência doméstica e o feminicídio, embora a efetividade de sua aplicação ainda seja um desafio. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é o principal marco legal, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ela define cinco tipos de violência (física, psicológica, moral, sexual e patrimonial) e prevê a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, varas especializadas e delegacias de atendimento à mulher (DEAMs) .
Em 2015, a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) foi sancionada, alterando o Código Penal para incluir o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio, tornando-o hediondo e inafiançável. Essa lei busca dar visibilidade a essa forma extrema de violência de gênero e garantir punições mais severas para os agressores.
Além das leis, o país conta com diversas políticas públicas e programas que visam desde a prevenção até o acolhimento e a reabilitação das vítimas. Entre eles, destacam-se:
- Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres: estabelece diretrizes e ações para a prevenção, combate e atendimento às mulheres em situação de violência .
- Programa Mulher Viver sem Violência: lançado em 2013, busca integrar e ampliar os serviços públicos para as mulheres em situação de violência, com a criação das Casas da Mulher Brasileira .
- Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios: instituído em 2023, tem como objetivo prevenir todas as formas de feminicídio, por meio de ações intersetoriais e coordenadas entre os diferentes níveis de governo .
- Casas da Mulher Brasileira: espaços que integram diversos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência, como acolhimento e triagem, apoio psicossocial, delegacia especializada, Juizado/Vara, Ministério Público, Defensoria Pública e alojamento de passagem .
- Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Serviço gratuito e confidencial, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, para receber denúncias e orientar as vítimas .
- Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs): delegacias especializadas no atendimento a mulheres vítimas de violência, com equipes capacitadas para acolher e investigar os casos .
- Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAMs): oferecem acolhimento, acompanhamento psicossocial e orientação jurídica às mulheres em situação de violência .
- Defensorias Públicas: prestam assistência jurídica gratuita a pessoas que não podem pagar por um advogado, incluindo mulheres vítimas de violência .
- Ministério Público: atua na defesa dos direitos das mulheres e na fiscalização da aplicação da Lei Maria da Penha .
- Casas-Abrigo: oferecem acolhimento sigiloso e temporário a mulheres em risco de morte devido à violência doméstica .
- Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência: conjunto de órgãos e serviços que atuam de forma integrada para garantir a proteção e o atendimento integral às mulheres vítimas de violência .
Essas ferramentas legais e políticas públicas são essenciais para o enfrentamento da violência de gênero no Brasil. No entanto, a sua efetividade depende não apenas da existência, mas da ampla divulgação, do acesso facilitado e da garantia de que as vítimas se sintam seguras para buscar ajuda e denunciar seus agressores. A conscientização e a educação são fundamentais para transformar a cultura de violência e construir uma sociedade mais justa e igualitária
Um Chamado à Ação e o Papel da ACCA Autonomia Feminina
A violência doméstica e as ameaças de morte contra mulheres são problemas graves e persistentes no Brasil, com raízes profundas em desigualdades de gênero e estruturas sociais. Os dados estatísticos alarmantes e os relatos comoventes de vítimas e sobreviventes evidenciam a urgência de uma ação contínua e multifacetada. Embora o Brasil possua um arcabouço legal robusto, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, e uma série de políticas públicas e programas de apoio, a efetividade dessas iniciativas depende da conscientização, do engajamento de toda a sociedade e do fortalecimento das redes de apoio.
Na ACCA , acreditamos que a informação e a ação são pilares fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É fundamental que a sociedade brasileira reconheça a violência doméstica como uma questão de direitos humanos e saúde pública, e não como um problema privado. A denúncia é um passo crucial para romper o ciclo da violência, mas é igualmente importante que as vítimas encontrem um sistema de apoio que as acolha, proteja e as ajude a reconstruir suas vidas. Isso inclui acesso facilitado a serviços de saúde, apoio psicológico, assistência jurídica e oportunidades de autonomia financeira.
A luta contra a violência doméstica exige um esforço conjunto de governos, instituições, sociedade civil e de cada indivíduo. A ACCA, através de seus projetos como “Mulheres Conectadas contra a Violência Digital, “RevelArtes: Mulheres em Cena” e o “Programa ACCA: Autonomia Feminina”, trabalha incansavelmente para desconstruir estereótipos de gênero, educar para o respeito e a igualdade, e garantir que agressores sejam responsabilizados por seus atos. Convidamos você a conhecer e apoiar nossas iniciativas, pois somente assim será possível construir um futuro em que todas as mulheres brasileiras possam viver livres do medo, da violência e da ameaça, em uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.
Referências
[1] G1. (2025, 10 de março). 21,4 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses, diz pesquisa. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/03/10/214-milhoes-de-brasileiras-sofreram-algum-tipo-de-violencia-nos-ultimos-12-meses-diz-pesquisa.ghtml
[2] Agência Patrícia Galvão. (s.d.). 2 em cada 10 brasileiras já foram ameaçadas de morte por parceiro ou ex. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-domestica/2-em-cada-10-brasileiras-ja-foram-ameacadas-de-morte-por-parceiro-ou-ex/
[3] Agência Brasil. (2024, 25 de novembro). Duas em cada 10 brasileiras já sofreram ameaça de morte de parceiros. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-11/duas-em-cada-10-brasileiras-ja-sofreram-ameaca-de-morte-de-parceiros
[4] G1. (2025, 11 de junho). Brasil tem alta de feminicídio e estupro em 2024; roubo a banco e de veículos caem, aponta ministério. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/06/11/brasil-tem-alta-de-feminicidio-e-estupro-em-2024-roubo-a-banco-e-de-veiculos-caem-aponta-ministerio.ghtml
[5] CNN Brasil. (2025, 24 de julho). Feminicídio bate recorde no Brasil em 2024, diz estudo. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/feminicidio-bate-recorde-no-brasil-em-2024-diz-estudo/
[6] CNN Brasil. (2025, 11 de junho). Feminicídio: quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/feminicidio-quatro-mulheres-sao-assassinadas-por-dia-no-brasil/
[7] ANDES. (2025, 28 de julho). País tem novo recorde de casos de feminicídios e estupros, diz FBSP. Disponível em: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/brasil-tem-novo-recorde-de-casos-de-feminicidios-e-estupros-diz-fBSP1
[8] G1. (2019, 18 de abril). Agressões, ameaças, injúria: veja relatos de vítimas na delegacia recordista de casos de violência contra mulher no RJ. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/18/agressoes-ameacas-injuria-veja-relatos-de-vitimas-na-delegacia-recordista-de-casos-de-violencia-contra-mulher-no-rj.ghtml
[9] G1. (2023, 8 de março). Mulheres que superaram violência doméstica mudam de vida e viram inspiração para outras vítimas. Disponível em: https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2023/03/08/mulheres-que-superaram-violencia-domestica-mudam-de-vida-e-viram-inspiracao-para-outras-vitimas.ghtml
[10] Revista Esquinas. (2025, 28 de agosto). Histórias de superação: a vida depois da violência doméstica. Disponível em: https://revistaesquinas.casperlibero.edu.br/cotidiano/historias-de-superacao-a-vida-depois-da-violencia-domestica/
[11] Planalto. (2006, 7 de agosto). Lei nº 11.340. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
[12] Senado Federal. (2025, 7 de março). Lei do Feminicídio completa 10 anos como marco de proteção à mulher. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/03/07/lei-do-feminicidio-completa-10-anos-como-marco-de-protecao-a-mulher
[13] Ministério das Mulheres. (s.d.). Marcos Legais. Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/assuntos/leis-nacionais-e-marcos-legais
[14] Associação Cultura Cidade e Arte. (s.d.). Projetos. Disponível em: https://culturacidadeearte.org/projetos/
[15] Associação Cultura Cidade e Arte. (s.d.). Autonomia Feminina. Disponível em: https://culturacidadeearte.org/autonomia-feminina/





