Rosa Parks: O Poder do Não
Com Raphaella Gomes, jovem pesquisadora do Coletivo Rosa Parks (UFG), exploramos como um simples “não” pode transformar história, inaugurar resistências e construir autonomia feminina e negra.
Do Estúdio ao Blog transforma as conversas do programa Autonomia Feminina da ACCA em textos que aprofundam contextos, trajetórias e ferramentas de ação política. Nesta edição especial, portanto, recebemos Raphaella Gomes, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora do Coletivo Rosa Parks na Universidade Federal de Goiás, para uma reflexão potente sobre o legado histórico de Rosa Parks e seu significado para as lutas contemporâneas por justiça racial e de gênero no Brasil.
O Gesto que Mudou a História
Em 1º de dezembro de 1955, Rosa Parks recusou-se a ceder seu lugar no ônibus em Montgomery, Alabama. Esse gesto aparentemente simples condensou séculos de violência racial, disciplinamento de corpos negros e controle sistemático da mobilidade e da dignidade. Portanto, Parks não estava apenas cansada fisicamente: estava cansada de ceder, de aceitar, de se submeter a leis que diminuíam vidas inteiras.
Consequentemente, seu “não” desencadeou o histórico Boicote de Ônibus de Montgomery, que durou 381 dias e mobilizou toda a comunidade negra da cidade. Durante mais de um ano, milhares de pessoas caminharam quilômetros diariamente, criando redes de apoio e solidariedade que sustentaram a resistência coletiva. Dessa forma, desse movimento emergiram lideranças como Martin Luther King Jr., e a luta resultou na decisão da Suprema Corte que declarou ilegal a segregação racial nos transportes públicos.
“Rosa Parks não estava cansada fisicamente, mas cansada de ceder. Ela sabia que recusar significava desafiar uma lei segregacionista que diminuía vidas.”
Entretanto, o legado de Rosa Parks não terminou ali. Ela continuou sua militância, trabalhou no gabinete do deputado John Conyers, fundou centros de acolhimento para crianças e jovens, e recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade em 1996. Atualmente, seu nome vive em escolas, ruas e, como veremos, em coletivos universitários que seguem seu exemplo de resistência organizada.
Do Alabama para Goiânia: O Coletivo Rosa Parks
Na Universidade Federal de Goiás, o Coletivo Rosa Parks reúne pesquisadoras, docentes e ativistas para estudar e enfrentar, de forma interseccional, o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Coordenado pela professora Luciana de Oliveira Dias, portanto, o coletivo é um espaço de orientação coletiva, pesquisa engajada e acolhimento.
Além disso, Raphaella Gomes encontrou no coletivo não apenas um espaço acadêmico, mas um lugar de pertencimento. Vinda de uma família que sempre incentivou a arte e a leitura, Raphaella transitou pelas escolas públicas de arte de Goiânia antes de chegar às Ciências Sociais. Assim, foi em uma disciplina com a professora Luciana que ela descobriu o coletivo e, com ele, novas possibilidades de atuação política e intelectual.
Raphaella Gomes e Márcia Pelá durante a gravação do programa Autonomia Feminina — Foto: ACCA / 2025
Pesquisa como Ato de Resistência
Certamente, o trabalho desenvolvido por Raphaella no Coletivo Rosa Parks vai muito além da academia tradicional. A pesquisa em que ela atua documenta agências e autorias de pessoas negras na antropologia em universidades federais de todo o Brasil, analisando currículos de graduação e pós-graduação para mapear a presença — ou ausência — de intelectuais negros nas disciplinas.
Por outro lado, os resultados preliminares revelam um cenário que muitos já suspeitavam: apesar da implementação das políticas de cotas ter transformado visualmente a universidade, trazendo mais corpos negros para dentro dos campi, essa presença física ainda não se reflete nos currículos e nas bibliografias. Em outras palavras, pessoas negras continuam sendo muito estudadas, mas suas próprias produções intelectuais permanecem invisibilizadas.
“A gente como pessoas negras somos muito estudados ainda, somos muito observados, mas a nossa observação ela não é validada.”
Principais Achados da Pesquisa:
• Ausência significativa de autores negros nos currículos de antropologia, mesmo após a implementação das cotas
• Concentração eurocêntrica persiste como padrão dominante na formação acadêmica
• Necessidade urgente de políticas que vão além do acesso, focando na permanência e no reconhecimento intelectual
• A pesquisa combate a narrativa de histórias únicas denunciada por Chimamanda Ngozi Adichie
Nesse sentido, essa pesquisa bibliográfica é, em si, um ato político. Ao mapear onde pessoas negras atuam (ou não atuam) dentro da universidade, o coletivo demonstra que a história intelectual negra não apenas existe, mas tem importância fundamental. Portanto, trata-se de uma luta pelo reconhecimento da produção de conhecimento negra e pelo fim de sua sistematização como meros objetos de estudo.
Interseccionalidade na Prática
Para Raphaella, falar de interseccionalidade não é repetir um conceito acadêmico da moda: é descrever sua própria realidade. Na verdade, a universidade, apesar de pública e de ter políticas de cotas, ainda não é um espaço verdadeiramente acessível. A permanência estudantil é precária, e ter tempo para se dedicar à pesquisa e à extensão continua sendo privilégio de poucos.
Quem tem esse tempo? Geralmente, pessoas de classes sociais mais altas, em sua maioria brancas, filhas de pais que tiveram acesso à educação. Em contrapartida, estudantes negros, pobres, LGBT+ e de periferias precisam dividir-se entre universidade e trabalho: muitas vezes em empregos de 8 horas diárias que se estendem aos finais de semana.
“Para você acessar a pesquisa, você precisa ter tempo para isso. Quem tem tempo para se dedicar a essas coisas são pessoas que estão em classes sociais mais altas.”
Nesse contexto, a evasão universitária, especialmente em cursos de humanas que não oferecem retorno financeiro imediato, tem raça, tem classe, tem endereço, tem sexualidade. Assim sendo, a interseccionalidade não é abstração teórica: é a realidade concreta que determina quem fica e quem sai da universidade, quem produz conhecimento e quem permanece invisibilizado.
Teoria e Prática: Duas Faces da Mesma Moeda
Uma das preocupações centrais de Raphaella é o falso dilema entre teoria e prática. Segundo ela, não existe prática sem teoria: toda ação está sustentada por ideias, conscientes ou não. Quando não pensamos criticamente sobre nossas ações, não é que estejamos agindo sem teoria; pelo contrário, estamos apenas sendo pautados por teorias alheias, muitas vezes hegemônicas e opressoras.
Ademais, o Coletivo Rosa Parks entende a pesquisa como ferramenta de transformação social. Estudar currículos, mapear autorias negras e discutir interseccionalidade não são exercícios desconectados da realidade: são formas de munir a luta política com conhecimento crítico, de criar bases sólidas para a ação.
Por conseguinte, essa compreensão se manifesta nos grupos de estudo do coletivo, onde textos como os de Sueli Carneiro sobre dispositivo de racialidade provocam não apenas debates intelectuais, mas processos profundos de identificação e desabafo. Para muitas pessoas, especialmente aquelas vindas de cursos de exatas ou de áreas onde essas discussões são raras, o coletivo se torna um espaço onde sentimentos há muito reprimidos podem finalmente ser validados e compreendidos.
O Poder do Não como Prática de Autonomia
Voltando a Rosa Parks, seu “não” não foi apenas uma recusa: foi uma afirmação. Uma afirmação de dignidade, de humanidade, de direito à existência plena. Da mesma forma, estar na universidade sendo quem se é, pesquisando o que historicamente foi silenciado, ocupando espaços de onde se tentou expulsar pessoas negras: tudo isso é também dizer “não”.
Essa recusa se manifesta de múltiplas formas: não à invisibilidade intelectual, ao epistemicídio, às narrativas únicas. Também significa rejeitar a precarização da permanência estudantil e o currículo colonizado que ainda domina a academia.
Por outro lado, cada “não” carrega consigo um “sim”. Dessa forma, afirma-se a autodeterminação, o conhecimento produzido por e para pessoas negras, e a construção coletiva de autonomia. Como Raphaella ressalta, essa autonomia não é individualista: pelo contrário, é coletiva, construída em rede, sustentada pela memória de quem veio antes e pela esperança de quem virá depois.
“A mudança começa quando escolhemos a dignidade em vez da acomodação.”
Para Além da Universidade: Onde Encontrar Resistência
Similarmente, Raphaella reconhece que a luta por autonomia e representatividade não se limita aos muros universitários. Em Goiânia, diversos espaços culturais e coletivos trabalham pela valorização de histórias e expressões negras:
Espaços de Resistência em Goiânia:
• Basileu França – Centro cultural que deve ser ocupado por pessoas negras como espaço de produção artística
• Sertão Negro (Ateliê de Dalton Paula) – Espaço de um dos mais importantes artistas negros de Goiânia
• Tambores do Orum – Grupo de danças africanas que mantém vivas as tradições e memórias ancestrais
• Terreiros de religiões de matriz africana – Espaços fundamentais de resistência cultural e espiritual
• Coletivos universitários diversos – Além do Rosa Parks, há inúmeros grupos de estudo e extensão focados em questões raciais, de gênero e classe
Nesse sentido, a mensagem de Raphaella para jovens negras, indígenas e LGBTQIA+ que se sentem isoladas é direta: não desistam. Os espaços de acolhimento existem, mesmo que seja difícil encontrá-los. Quando você os encontra, quando se conecta com pessoas que compartilham os mesmos atravessamentos e lutas, a universidade e o mundo se tornam lugares onde você pode pertencer.
Representatividade: Conquista Real ou Apropriação?
Finalmente, um ponto importante levantado na conversa é o cuidado com a apropriação da luta antirracista por parte da hegemonia cultural. Raphaella observa que, embora hoje vejamos mais pessoas negras em novelas, filmes e publicidade, é preciso questionar quais papéis essas pessoas estão ocupando e quais histórias estão sendo contadas.
Com efeito, muitas vezes, a representatividade se limita a colocar corpos negros em cena, mas mantendo-os em posições subalternas ou narrando exclusivamente suas dores e traumas. Quando uma personagem negra alcança posição de destaque, a narrativa frequentemente se concentra no racismo que ela sofre, e não em sua atuação competente e autônoma.
Da mesma forma, esse fenômeno reflete o que acontece na universidade: a presença física aumentou, mas o reconhecimento intelectual ainda é negado. Corpos negros enchem as salas de aula, mas suas produções não enchem as bibliografias. Ou seja, é a aparência da mudança sem a transformação da essência: e é aí que reside o perigo da cooptação.
🎧 Ouça os Episódios Completos
Episódio 25 — Rosa Parks: O Poder do Não (Parte 1) Episódio 26 — Rosa Parks: O Poder do Não (Parte 2)Fortaleça Vozes que Transformam História em Ação
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