
Misoginia internalizada, sororidade e autonomia: como mulheres unem forças para vencer a opressão interna e digital
Você já pensou em como a misoginia pode se manifestar internamente, afetando nossa autoestima e a forma como enxergamos outras mulheres?
Essa pergunta, lançada em uma live recente promovida pela Associação Cultura, Cidade e Arte (ACCA), vai ao cerne de um obstáculo muitas vezes invisível à autonomia feminina: a misoginia internalizada. Em pleno século XXI, mulheres avançam em diversos espaços, mas ainda enfrentam barreiras profundas – algumas explícitas, outras silenciosas. Quase metade das mulheres em países em desenvolvimento, por exemplo, ainda tem negado o direito de decidir sobre o próprio corpo em questões como sexo e contracepção. No Brasil e no mundo, a luta pela autonomia feminina ganha novas formas e urgência, seja nas conversas sobre ódio silencioso contra si mesmas, seja no combate à violência digital ou na conquista de espaços na arte e na cultura. As iniciativas da ACCA refletem esse contexto social atual, conectando conhecimento, ativismo e inspiração para fortalecer a voz e a autonomia das mulheres.
Misoginia internalizada: o inimigo silencioso
A misoginia internalizada é um fenômeno no qual mulheres, condicionadas por séculos de patriarcado, acabam incorporando preconceitos de gênero e desvalorizando a si mesmas e a outras mulheres. Em outras palavras, é quando o machismo deixa marcas dentro de cada uma, influenciando comportamentos e autoimagem. A ACCA destaca que este é um “tema essencial” a ser debatido, pois afeta diretamente como as mulheres se enxergam a si próprias e umas às outras . Na live intitulada “Misoginia Interiorizada”, realizada em 19 de fevereiro de 2025, ativistas e especialistas discutiram como identificar e superar esse inimigo invisível. O objetivo do debate foi “sensibilizar a sociedade sobre as raízes do ódio silencioso direcionado às mulheres” – ou seja, expor aquelas atitudes negativas sutis que muitas vezes passam despercebidas, mas corroem a autoestima feminina e a solidariedade entre mulheres. Reconhecer esses padrões internalizados é o primeiro passo para rompê-los. Como ressaltaram as participantes do bate-papo, é preciso reaprender a valorizar umas às outras e a si próprias, pois a autonomia começa também na mente e no coração de cada mulher.
Sororidade e apoio mútuo
Para enfrentar a misoginia – seja a interna, seja a externa – a palavra de ordem é sororidade. O termo, derivado do latim soror (irmã), representa a união e apoio mútuo entre as mulheres. Na prática, sororidade significa trocar competição por colaboração, julgamento por compreensão. A própria ACCA enfatiza a importância de “fortalecer o laço entre mulheres e a importância do apoio mútuo” como caminho para ampliar a autonomia feminina. Exemplos dessa solidariedade aparecem em diversos setores: grupos de mentoria profissional exclusivos para mulheres, redes de acolhimento a vítimas de violência, coletivos feministas que promovem rodas de conversa e campanhas educativas. Quando mulheres se unem para compartilhar experiências e se apoiar, rompem o isolamento imposto pelo preconceito e constroem juntas uma base sólida para que cada uma possa caminhar com mais independência. Essa união ajuda a dissipar a misoginia internalizada – afinal, ao ver outra mulher como aliada e não como inimiga, abre-se espaço para a cooperação e para a valorização da identidade feminina.
Desafios na era digital: violência online
Se por um lado a internet amplificou as vozes femininas, por outro trouxe também novos desafios. A violência digital contra mulheres é uma realidade crescente. De acordo com um relatório da Plan International, 58% das meninas e mulheres jovens já sofreram algum tipo de assédio ou violência online. No Brasil, pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que cerca de 70% das mulheres que utilizam a internet já foram vítimas ou testemunharam comportamentos misóginos nas redes. Esses números alarmantes mostram a urgência de enfrentar a misoginia no ambiente virtual. O ataque online – seja via xingamentos, ameaças, vazamento de fotos íntimas ou tentativas de silenciamento em debates – é uma extensão do machismo para a esfera digital e pode minar a autonomia feminina ao intimidar mulheres que se expressam.
Ciente desse cenário, a ACCA lançou a campanha “Corte o Ódio, Conecte Igualdade”, parte do projeto Mulheres Conectadas Contra a Violência Digital. Entre as ações está o desafio “7 Dias Sem Ódio”, uma mobilização que transcendeu o mundo virtual e se consolidou como uma poderosa iniciativa de resistência coletiva. A organização também produziu um e-book tutorial com “estratégias de ação e resistência contra a misoginia digital”, um guia essencial para ajudar mulheres a se protegerem e a reagirem a ataques virtuais . Na cartilha da ACCA, o alerta é claro: “A misoginia digital é um desafio que não podemos ignorar, mas também não precisamos enfrentar sozinhas” . A publicação incentiva a denúncia, a segurança online e o apoio mútuo. Combater a violência de gênero na internet é fundamental para que as mulheres possam exercer plenamente sua voz e cidadania no mundo digital, sem medo de retaliação.
Arte, cultura e inspirações de autonomia
Enquanto batalhas são travadas contra a violência e o preconceito, também há conquistas a celebrar. Um exemplo inspirador vem da própria ACCA com o projeto RevelArtes: Mulheres em Cena, que valoriza o protagonismo feminino nas artes. O projeto surgiu “como uma resposta à necessidade de reconhecer, incentivar e proporcionar visibilidade às mulheres artistas, sejam cis ou trans, de Goiás”. Historicamente, o campo das artes – assim como tantos outros – foi marcado pela sub-representação feminina. Para mudar esse quadro, a iniciativa criou um ambiente inclusivo que destaca trajetórias, talentos e desafios das artistas goianas, mostrando na prática o que a autonomia feminina significa em termos de expressão cultural.
Em 2024, a primeira edição do Prêmio RevelArtes: Mulheres em Cena selecionou e premiou artistas locais, cujos trabalhos finalmente ganharam a visibilidade merecida. A premiação veio acompanhada de uma websérie documental em quatro episódios sobre as vencedoras e convidadas, explorando diferentes facetas da vivência feminina por meio da arte. Na segunda temporada da websérie, lançada no ano seguinte, a produção explora temas como identidade, resistência e feminilidade . Os episódios trazem à tona a arte transformadora de Jéssika Hannder, a poesia em movimento de Thaise Monteiro e a inovação de Mar Dias Rosa, entre outras vozes femininas da cena cultural. Ao evidenciar a diversidade de perspectivas no cenário artístico, o projeto não só celebra essas mulheres como também inspira outras a perseguir seus sonhos criativos. Cada história de uma pintora, musicista, cineasta ou dançarina que conquista seu espaço ajuda a quebrar estereótipos de gênero e prova que lugar de mulher é onde ela quiser – seja no palco, no museu, no estúdio ou nas ruas da cidade.
A força do ativismo e os próximos passos
Os exemplos acima mostram que a autonomia feminina é construída dia após dia, em múltiplas frentes. Seja no combate à violência, na mudança de mentalidades ou na afirmação através da arte, existe um fio condutor: a mobilização coletiva e a perseverança das mulheres. No Brasil atual, essa mobilização também passa por enfrentar retrocessos. A Proposta de Emenda à Constituição 164/12, por exemplo, foi classificada como “um retrocesso grave para os direitos das mulheres no Brasil” por entidades feministas, pois ameaça conquistas importantes da autonomia feminina. Diante de desafios assim, a resposta tem sido clara: não aceitar, mobilizar-se e lutar.
Cada campanha de conscientização, cada live educativa, cada prêmio que eleva o trabalho de mulheres e cada rede de apoio criada faz parte de um panorama maior de transformação social. Ainda há muito por fazer para que mulheres de todas as origens tenham plena autonomia sobre suas vidas e corpos, mas os passos dados até aqui já ilumam um caminho. O conhecimento é um grande aliado nessa jornada – não por acaso, a ACCA reforça a ideia de que conhecimento liberta. Informar-se sobre igualdade de gênero, reconhecer as desigualdades existentes e aprender com as experiências umas das outras são atitudes que empoderam e catalisam mudanças.
Em meio a obstáculos antigos e novos, a autonomia feminina segue como uma construção coletiva e contínua. E a sociedade só tem a ganhar quando mulheres ocupam com liberdade todos os espaços que lhes pertencem por direito – na cidade, na cultura, na arte, na política e onde mais desejarem. Cada conquista individual reverbera e pavimenta o caminho para as próximas gerações. Como demonstram as vozes destacadas pela Cultura, Cidade e Arte, a união e a resistência das mulheres estão escrevendo uma história de autonomia cada vez mais forte, em que o apoio mútuo vence o ódio e abre alas para um futuro mais igualitário e justo.